Sobre corridas

Por Jales Carvalho
Entre os 14 e os 17 anos integrei a equipe de atletismo da ETFMT – Escola Técnica Federal de Mato Grosso, no período em que cursava Edificações.
Nessa ocasião eu era velocista, e corria nas provas de 100 e 200 metros. Os treinos eram duros, e por várias vezes vomitei devido ao nível de esforço que impunham, além de, frequentemente, ter de descer escadas de costas (andar para trás) por causa das dores musculares. Apesar de ter alguma apetência natural para esse tipo de prova, nunca tive grande destaque, as minhas marcas não fizeram sucesso.
Eu detestava as corridas longas, achava-as enfadonhas, muito esforço durante muito tempo, eram um suplício que cumpria por obrigação, nas rotinas que o treinador mandava.
Essa minha “epopeia” nas corridas não me rendeu louros ou medalhas, mas seguramente acrescentou em mim um pouco mais de capacidade de luta e resistência ao sofrimento, além da grata satisfação de constatar que eu já não tinha pernas finas. As características físicas adquiridas despertavam agora a atenção das meninas, e isso foi um grande incentivo para mim, um garoto tímido que na hora do recreio se refugiava no seu canto seguro, a biblioteca.
Em 1982 veio a universidade e em 1983 o Exército em paralelo. Fiz o curso de oficial temporário do Exército – NPOR, e neste ano corri quase todos os dias, as tais corridas longas. Foi então que melhorei as minhas capacidades de resistência e tolerância, e as tão famigeradas corridas longas já não eram inteiramente chatas.
Nos anos seguintes dediquei-me muito ao tema da preparação física. Após o término da minha história no Exército desenvolvi um negócio próprio – A Corpus Academia – entre 1988 e 1995. Muita malhação, mas pouca corrida.
Passadas muitas histórias, água debaixo da ponte, por fim chego a Lisboa em 15 de fevereiro de 1996.
O meu primeiro trabalho aqui foi num Health Club chamado Barriga Killer, e as corridas se resumiam a algumas idas e vindas do Barriga Killer até à Torre de Belém.
Quase duas décadas em Lisboa e as atividades de corrida já tinham se popularizado muito. Eu já tinha vários alunos que corriam e para os quais eu faço programas de preparação de base, específica para corridas de longa distância.
Foi então que no final de 2013 comecei a dar umas pequenas pernadas, com muita dificuldade e sofrimento, pois mesmo tendo boa condição física, não estava preparado para as tais corridas longas… Treino é treino e corrida é outra coisa!
Em Março de 2014 surgiu-me um pensamento: vou correr 1000 Km até ao fim do ano! Ia completar 50 anos e achei que devia impor-me algum desafio.
Passaram-se muitos anos, desde o atletismo na ETF e no Exército, até aos dias atuais. Seguramente que as experiências valeram, sobretudo no comportamento e determinação, mas a capacidade de correr havia ficado exatamente onde deixei, lá atrás, e a corrida de longa distância continuava difícil.

Dediquei-me aos treinos, tive duas lesões, corri provas lesionado e sofri como gente grande. Descobri que os trilhos são muito menos monótonos e muito mais divertidos que as corridas de rua, além de que combinam melhor com as minhas características físicas. Os atletas de Trail Run precisam gostar de desafios e ter boa capacidade de sofrimento, pois durante as provas somos capazes de passar longos períodos de isolamento. A companhia nalguns momentos da prova de corrida, pode ser vital.
Para mim, a corrida é um momento de introspeção. Quando corro, tenho que viver o aqui e agora, preciso saber exatamente onde e como vou pisar, encontrar a melhor forma de vencer os obstáculos, necessito sentir o meu corpo e saber gerir o esforço e as minhas energias… preciso de muita força física, e ainda mais de força de vontade e determinação.
Submeter-me a um esforço sem a certeza de conseguir realizar, sabendo da sua dificuldade, ajuda-me a encarar o dia a dia, na medida em que traço um paralelo com o que a vida é: um desafio constante e incerto. Na corrida como na vida, a presença e ajuda de outros pode ser de vital importância, mas os resultados somente serão alcançados através do meu próprio esforço.
Vencer não é necessariamente chegar em primeiro, mas, superar-se e conseguir cumprir o percurso. A força física encontro nos treinos duros e intensos que realizo, com a dedicação e disciplina que os anos de formação embutiram no meu modo de ser.
Corro e treino por mim e por quem amo. Inspiro-me nos momentos agradáveis já vividos ou que sonho viver, mas sobretudo, penso na luta do dia a dia e nas dificuldades superadas. Penso nos meus pais com carinho, admiração e agradecimento pelas tantas superações que tiveram, muito mais difíceis que as minhas, penso nos meus filhos e procuro ser fonte de inspiração e exemplo para eles, penso nos amigos do peito com empatia e companheirismo, na mulher que amo, penso com amor e vontade de me tornar melhor. Busco força e motivação naqueles que amo e respeito, ou mesmo em histórias difíceis de pessoas anônimas, pois compreendo que assim é a vida, provas e superações.

Encarar os desafios das corridas ajudou-me também a compreender melhor as dificuldades dos meus alunos, especialmente daqueles com menor apetência e disposição para a atividade física. Acrescentou-me qualidades e know-how para argumentar e elaborar planos de treino. Além de que a atividade física vigorosa é capaz de provocar sensações muito agradáveis, com a produção de endorfinas que causam um grande bem-estar e fazem com que o descanso adquira o sentido real. Somente é possível descansar depois de estar cansado, não é isso? E como é bom o descanso depois de uma prova ou treino exaustivo!